Noé Alves
Imagen de Noé Alves

Relato de Peregrinação de Noé Alves - Caminho de Santiago Português

Em 1999, terminava o milénio, o Porto ameaçava ruir em cima da cabeça de M., um viajante entre a sanidade e a loucura, cujo último trabalho tinha sido artista de rua com um grupo de nome Macumba Groove, no qual exibia as suas qualidades de tocador de Berimbau e Capoeirista.

Em Março desse ano, desligou.se do grupo e arriscou os últimos tostões nuns meses num quarto duma comunidade de jovens nos arredores daquela cidade (Pedras Rubras). Ao fim do dinheiro foi para a rua, juntando-se a um pequeno grupo de Punks que habitavam numa casa abandonada perto da R. da Boavista.

Insatisfeito com a situação em que se encontrava, M. revolvia o seu intímo sobre o que, como e onde procurar. A vida, com tons soturnos de tristeza, até o fazia esquecer que era Verão. Decidiu sair do Porto e até de Portugal por 3 a 5 anos, tinha Barcelona chamando-o como uma sereia encantada e a Europa para lá dos Pirinéus soprando perigosamente aos seus sentidos.

Pela década de ’90, M. viajou pela Europa em mais de uma dezena de viagens por comboio.

M. seguia as direcções das okupas, dos squats, dos krakers... Por lá se ambientava, alimentando a ambição de prolongar durante alguns 3 ou 4 anos uma estadia num lugar desses. Na cidade onde vivia (Porto) o Movimento Okupa era ainda incipente. Marcou Barcelona, Paris ou Geneve como os lugares onde gostaria de viver tal experiência. O seu plano em três traços: habitar numa Okupa; vender jornais de rua; treinar Capoeira.

Nesse verão decidiu rumar a esse plano, primeiro indo até Santiago de Compostela e depois Barcelona. Dirigiu-se primeiramente ao Alto Minho, assentando praça nos festivais – Ilha do Ermal, Paredes de Coura e por último Vilar de Mouros.

Já apenas com alguns escudos, foi de comboio até Redondela (Galiza), acompanhado por uma dama, morena e vistosa, baixinha e de cabelo longo levemente encaracolado.

Ali por Redondela, juntou-se-lhes um italiano, já com pouco cabelo e sem metade de um dedo polegar, e um português(?) alto e magro, de cara morena e cabelo curto escuro, aos quais convenceu a caminharem até Santiago de Compostela os quatro.

A comerem quase nada, só se lembra duns curtumes ao fogo oferecidos por um casal de aldeãos e maçarocas de milho, fizeram-se ao Caminho. Por Pontevedra, tiveram conhecimento de que não poderiam pernoitar nos Albergues de Peregrinos pois não traziam consigo o documento de Peregrino que é obtido nas variadas igrejas espalhadas pelo território. Dormir nas florestas (era Agosto, não chovia) tornou-se a derradeira opção, que agradou ao protagonista desta história. Conseguiram, mesmo assim, licença para comer nos comedores católicos, para matar a fome, a comida sabia maravilhosamente.

Uma ideia de M. era fabricar um Berimbau durante o Caminho, o instrumento da Capoeira e arranjou pau a preceito, ficando a ideia de pedir uma cabaça a algum aldeão na sua mente. (De facto, só conseguiria uma cabaça passados 3 anos e em Portugal (Valpaços), e, com outro pau é certo – uma haste forte da qual não sabia de que tipo de árvore provinha- manufacturou o berimbau que lhe animou a solitude durante alguns meses.)

Ao passarem por uma vila M. leu um  jornal do Caminho onde se revelava que o Princípe da Astúrias passaria por lá em data incerta, pois fazia um caminho que provinha do mar e se juntava ao nosso (o Caminho Português).

Perto do fim do Caminho, passaram por um ponto da floresta que estava queimado e desceram até à cidade de Compostela.

Lentamente, começaram a separar-se. O Italiano, que se revelou um talento de rua, montou um show em que caminhava por vidros partidos de garrafa na Praça do Obradoiro, do lado esquerdo da Catedral, o português observava.

Conseguiu 3 dias de dormida no Albergue de Santiago. E depois de mais duas noites com a sua morena, ao relento, na cidade, M. conseguiu senhas para cinco almoços e jantares no comedor, através das Cáritas. Já não a viu mais, chegava ao fim a sua estadia em Santiago.

A 5 de Setembro, dia dos anos de M., entrou na missa na catedral e assistiu à ceremónia, com o gigantesco defumador a provocar o delírio da multidão. Quando se preparava para receber a hóstia e assim comungar, alguém lhe entregou umas moedas. Saíu para a praça, contou as pesetas e ao passar por uma loja de souvenirs, escolheu e comprou um pin dourado com o símbolo da vieira.

Decidido a perder-se por Espanha e atingir Barcelona, iniciou o caminho para Sul a pé através da estrada para Ourense (Caminho Via de La Plata), que alguém já lhe dissera ser embruxada. Chegou a Ourense depois de muito caminhar e um pequena boleia nos últimos quilómetros, de uma furgoneta com 3 homens de negro que lhe propuseram trabalhar nas vindimas, não aceitou, saindo naquela cidade.

Ao fim de uma noite e um dia continuou a caminhada e 14 Kilómetros à frente uma outra furgoneta, desta vez de um casal, acompanhados de um homem, parou e, mais uma vez, se ouviu a proposta de ir vindimar. Aceitou…

 

Noé Alves